Tiffany NY Christmas window
Ode aos Natais Esquecidos
Eu vinha, pé ante pé, em busca da pequena porta
que dava acesso aos mistérios da noite,
daquela noite em particular, por ser a mais terna
de todas as noites que a minha memória
era capaz de guardar, com letras e sons,
no seu bojo de coisas imateriais e imperecíveis.
Tinha comigo os cães e os retratos dos mortos,
a lembrança de outras noites e de outros dias,
os brinquedos cansados da solidão dos quartos,
os cadernos invadidos pelos saberes inúteis.
E todos me diziam que era ainda muito cedo,
porque a meia-noite morava já dentro do sono,
no território dos anjos e dos outros seres alados,
hora inatingível a clamar pela nossa paciência,
meninos hirtos de olhos fixos na claridade
enganadora de uma árvore sem nome.
José Jorge Letria, Natal
(excerto)
Não. Para mim os natais da minha infância não estão esquecidos. Foi a parte mais suave e mais bonita da minha vida.
Infância protegida, acarinhada, rodeada de muitos irmãos, todos rapazes, sendo eu a mais novinha, e de meus pais. Ah! E de minha avó materna. A única que pude conhecer.
Avó Beatriz, loira com fios brancos, mulher guerreira, e que de tanta doçura me rodeou. Sua neta mais querida, dizia. A neta que a acompanhava até à quinta, nas férias da Páscoa ou de verão, e se levantava de madrugada para a acompanhar à missa da aldeia, hoje cidade, lá no Mosteiro. Nas terras do Minho, fronteira com Trás-os-Montes.
Mas no Natal, avó Beatriz vinha para a cidade e juntava-se aos netos todos. Mas a noite de Natal, ela preferia partilhar da nossa alegria, excitação, na espera das doze badaladas.
Muito ensonados, saltávamos das camas, abríamos as portas dos quartos. E corríamos escadaria abaixo até ao verde pinheiro. Os rapazes mais indomáveis, deslizavam, velozes, pelo corrimão de madeira.
Muito ensonados, saltávamos das camas, abríamos as portas dos quartos. E corríamos escadaria abaixo até ao verde pinheiro. Os rapazes mais indomáveis, deslizavam, velozes, pelo corrimão de madeira.
Que teria deixado o Pai Natal para cada um de nós?
A casa era imensa, telhado lá no topo. Perfeito para as renas que puxavam o trenó poisarem e repousarem.
Havia vários fogões de sala. Portanto, a chaminé era grande, larga. Ideal para o Pai Natal passar com o seu imenso saco e cair directamente no fogão da sala grande, no último piso, onde se encontrava a árvore de verde pinho. A cadela Nina, uma Serra da Estrela, seguia-nos nessa excitação toda, companheira de todas as brincadeiras.
E meus pais, olhavam docemente, sorrindo cúmplices, ao observar os nossos olhos maravilhados, encadeados nas luzes da árvore de verde pinho. E nas prendas. Ouviam os nossos gritos Oh! de estupefacção - como poderia o Pai Natal ter recebido a nossa cartita? - e os nosso risos de alegria soltavam-se. E fingiam-se tão admirados quanto nós.
Até que um dia a morte entrou de rompante em nossa casa. E levou meu irmão, o mais novos dos rapazes. Mal fizera treze anos.
O Natal não voltou a ser o mesmo. O Pai Natal voltava. Mas já não ríamos despreocupados e felizes. Até Nina se tornara mais quieta. Ela que pressentira a noite que a morte rondou a nossa casa. Uivou lamuriosa.
Meus pais já não sorriam. Havia muita tristeza no seu olhar, Avó Beatriz tornou-se mais calada.
A grande emoção da nossa infância perdera-se com a partida de meu irmão.
Hoje, lembro todos. Muitos partiram. Tão precocemente. Avó Beatriz, meus pais. Eu não passava de uma miúda. A morte de meu irmão marcou seus corações. Não resistiram muitos anos.
Mais tarde, há dez anos, meu irmão mais velho desistiu da vida. Meu grande amigo partiu, sem resistir.
Todos juntos, assim acredito. Sinto. Olhando-me com ternura. Anjos protectores.
Nesta lembrança linda mesclada de tristeza, lembro os meninos de Alepo que já não choram. Meninos hirtos, de olhos fixos na claridade do fogo das armas que os matam, mutilam, traumatizam.
Pecado dos senhores das guerras que roubam os natais às crianças de Alepo.
Crianças que nunca terão lembranças doces de infância. Natais felizes, no aconchego do amor de seus pais. Em paz. Só guerra.
Orfãos de pais, de amor, de paz. Percorrem as ruas, tentam fugir do inferno da guerra, perdidos. Sem pais, sem irmãos, sem brinquedos.
Orfãos de pais, de amor, de paz. Percorrem as ruas, tentam fugir do inferno da guerra, perdidos. Sem pais, sem irmãos, sem brinquedos.
Gostaria de crer, de novo, que o mundo se transformará para o Bem. E que os valores do respeito pela vida, voltarão ao coração dos Homens e das Mulheres de boa vontade! Mas já não creio.
Miosótis (pseudónimo)
17.12.2016
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