Vivia numa casa grande. Quatro andares mais um andar assotado. A casa dava para um parque ladeado de seculares tílias. No Inverno, o barulho que faziam nas noites de temporal, assustava-me. Mas, mal chegava a Primavera, cobriam-se de verde. E no Verão eram sombras acolhedoras!
Escolhi o sótão como quarto, lá no topo, para não incomodar a família, nas longas horas de estudo de piano. Por sinal, o meu sótão era bem luminoso!
Todas as tardes, depois de regressar do colégio, subia para o quarto. Fechava a porta - só possível enquanto não chegava o calor - e sentava-me ao piano. Começava com o aquecimento: escalas, exercícios. Entrava então na repetição de compassos, passagens difíceis, criteriosamente assinaladas pela minha professora de piano. E só depois passava à execução integral de uma peça ou outra. A que me desse mais prazer.
Em final de tardes amenas, cansada, escapulia-me para o telhado, através da janela rasgada que abria de par em par, e lá ficava olhando os fios das nuvens, trauteando em silêncio as partituras deixadas.
Seguiam-se momentos de imaginação afoita diante de tanta imensidão. Estava tudo tão perto! Era dona de um espaço só meu, inexplorado, e deixava correr o pensamento ao sabor do infinito na transcendência do real. Pura adolescência!
Uns anos mais tarde, a casa foi vendida, e impiedosamente demolida. No trajecto que fazia para a faculdade, o autocarro passava mesmo ao lado da casa. E o meu olhar quedava-se no desmoronar do telhado, da janela, daquele quarto assotado. A tristeza caiu-me na alma.
Esta foto, via-a no espaço de um amigo que cultiva a fotografia. Eis então o que define este sentimento intimista! Um intervalo do tempo. O meu quarto assotado não teve tempo de envelhecer.
Miosótis (pseudónimo)
fragmentos da noite com flores, texto original 2011©
14.07.2011
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